quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sampa, Sampa, sou mutante igual a você


Amigos, como sabemos, RITA apenas não escreveu músicas nesses 50 anos de carreira, mas escreveu também muitas crônicas, algumas disponibilizadas em revistas e jornais. Escolhi uma das que eu mais gosto entre as várias que eu já li para postar aqui, para o deleite daqueles que não leram ainda.


Sampa, Sampa, sou mutante igual a você



Caetano diz que eu sou a mais completa tradução de Sampa. Puxa! Mas não é à toa... Acreditem ou não, quando eu morava no pacato bairro de Vila Mariana, a então “floresta” do Ibirapuera era minha! Uau, era de enlouquecer, um verdadeiro conto de fadas no meio da cidade. Eu e meus amiguinhos fazíamos até casinha no alto das árvores. Os pais diziam para tomar cuidado, que o Ibirapuera tinha até índio – o que deixava a turma ainda mais excitada. Me lembro que cheguei a plantar, eu mesma, um monte de eucaliptos, coqueiros, bananeiras e sementes de melancia. E acompanhava de perto o progresso do meu pomar como se fosse uma fazendinha.

Mas, um belo dia, chegou um batalhão de tratores e acabou de vez com a brincadeira. Foi um tal de cortar árvores, asfaltar terra, construir prédios modernosos, até que por fim resolveram inaugurar o Parque do Ibirapuera, tendo como carro-chefe aquele monumento sofrido do “empurra-empurra”. Era a grande festa do IV Centenário de Sampa, em 1954.

Como toda família paulista que se preza, a minha resolveu participar levando as crianças para ver a chuva de papéis picados prateados que caía do céu, a banda, os paraquedistas, etc. Mas foi só choradeira quando vi minha fazendinha destruída! Meu pai me disse tristemente: “É, agora o Ibirapuera virou realmente um Ibirapuera”, palavra que em tupi que dizer “lugar onde havia árvores”(ibirá-árvores, puera-lugar onde havia). Essa foi a primeira vez que tive peninha de Sampa.

Logo depois veio a aposentadoria dos bondes da CMTC (que a meninada traduzia marotamente assim: Cobrador, Meta o Troço no C...). Aqueles bondes maravilhosos e seus estribos voadores não serviam mais como transporte de massa. Foram pras cucuias, e com eles minha tão sonhada profissão de motorneira de bonde... Para substituí-los, trouxeram os papa-filas, uma espécie de ônibus-gigante puxado a trator, que faziam um barulho danado e deixavam fumaça por onde passavam. Diziam que a cidade estava crescendo e que o “progresso” era inevitável para Sampa se transformar em capital do mundo! E eu ficava pensando: ó nóis aqui traveis querendo ser a Nova York dos pobres...

Pois é, as coisas mudaram mesmo, e ficamos discretamente deselegantes, rodeados de palmeiras de concreto e o diabo a quatro. A Pompéia também não é mais aquela, mora! Você passa pelo bairro agora e não escuta mais o som... orra, meu, será que o Vesúvio se mudou pra cá também? As avenidas Paulista e Brasil, nem se fala, mais parecem colmeias frenéticas, tanto são os laboratórios e imobiliárias, eu hem Rosa! Mais: quem subir a rua Augusta a 120 por hora, dança (e não é rock não!). Ah, Sampa, quem te viu e quem te vê... Mas não tem nada não, eu sou mutante igual a você. Por isso, quando me perguntam se quero me mudar daqui, respondo: Não diga ao povo que fico. Diga que nasci aqui e não desisto dessa vida maluca. Diga também que tenho cintura pra segurar o balanço do meu coração caipira.

Rita Lee

Texto retirado da revista Quatro Rodas, edição especial de verão, n. 245, nov. de 1980.