Para que vocês tenham uma ideia sobre o livro, ele fica em permanente exposição no Centro de Memória da referida faculdade e aborda todos os aspectos históricos da instituição, incluindo sua fundação, federalização, organização, corpo docente, pesquisas, pós graduação, produção científica e, ainda, um capítulo especial sobre o papel das mulheres na história da faculdade nestes 100 anos, além da lista completa de todos os alunos graduados, como Juscelino Kubitscheck, Ivo Pitanguy e Guimarães Rosa.
O capítulo sobre o "Show Medicina" foi dividido em seis partes, cada uma abordando um período diferente da história deste grupo teatral que, mesmo sendo amador, é o mais antigo do Brasil. Dentre os autores, os dois fundadores do grupo que não exerceram a medicina como profissão: Jota Dangelo, diretor teatral muito respeitado no Brasil, já tendo sido inclusive Secretário de Cultura do Estado de Minas Gerais, presidente da Fundação Clóvis Salgado (que administra o Palácio das Artes) e Secretário Executivo do Ministério da Cultura. E Ângelo Machado, imortal da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Mineira de Letras, que se dedica a pesquisas sobre libélulas, já tendo descrito mais de 40 novas espécies. Ângelo também é autor de belíssimos livros, com destaque para a literatura infantil (sempre abordando como tema a preservação ambiental) e teatral.
Os demais autores seguiram a carreira médica. Rita foi mencionada pela fã Ana Luiza, presidente do grupo em 1995, como a fonte de inspiração para sua ousadia de fazer arte durante a formação acadêmica, atividade potencialmente fortalecedora da humanização na Medicina. Pois é, até nisso a obra de Rita Lee exerce grande influência.
Rita recebeu o livro com a seguinte dedicatória: "O verdadeiro médico é aquele que faz da Medicina uma Arte, e o verdadeiro artista, aquele que faz da Arte, Medicina".
Nada mais merecido. Rita Lee é médica de almas.
Abaixo, trechos do texto:
Daquele dia em diante, muito mais do que apenas a ciência passou a fazer sentido pra mim. Na Medicina, inclusive. Não, não havia qualquer pré requisito formal para atuar. Há coisas que não podem ser ensinadas, e o Show Medicina é uma delas. Aprende-se fazendo.
Rita Lee, diva da criatividade que sempre me inspirou, disse certa vez que mulheres bem comportadas não fazem história. Para fazer parte da história do Show Medicina, além de querer, também era preciso ousar. A ousadia inusitada de fazer graça em pleno período acadêmico e tudo o que ninguém jamais esperaria de um estudante de Medicina, nem mesmo ele próprio, ainda mais sendo calouro. Passar muitas noites em claro, e não somente nos plantões. Mesmo em véspera de provas, escrever textos, alguns inicialmente nem tão engraçados, mas com potencial, e enriquecê-los com personagens hilários, inspirados em nossas experiências diárias no Campus da Saúde, em nossos pacientes, professores ou em nós mesmos, acadêmicos. Criar e montar cenários enormes, ensaiar na calada da noite, pedir pizza de madrugada, dormir (sem cobertor) no chão do oitavo andar da faculdade e manter o mesmo ritmo de estudos em horário integral. Escola, ambulatórios, plantões, Show. O desafio era conciliar todas as tarefas. Ah, sim, e continuar tirando boas notas. Ou não?
(...)
Ao longo do curso aprendemos a fazer anamneses e exames físicos. Treinamos nossos olhos clínicos e nossas mãos cirúrgicas. Exaustivamente, estudamos para sermos capazes de fazer diagnósticos e adotar condutas baseadas em evidências sérias, mas não, não aprendemos a lidar com a vaidade de saber tanto. Deixemos, pois, a hipocrisia de lado para admitir que o orgulho de ser médico eternamente teimará em nos atingir, e isso nem sempre é bom, sobretudo em péssimas condições de trabalho. Conhecemos nossos limites, mas desejamos que ninguém mais saiba deles. Resta ao leigo paciente o direito de pedir uma segunda opinião.
Pois bem, nos ensaios do Show medicina aprendemos principalmente a ouvir críticas e a levá-las em consideração. Brigamos, choramos e trocamos insultos antes de sairmos juntos para tomar cerveja. O sucesso final depende exclusivamente da nossa capacidade de lidar com isso. Ninguém arrisca uma segunda opinião quando todos estão batalhando pelo mesmo aplauso. Cada Show Medicina é, para nós, uma nova lição de humildade. Prova de que uma democracia de verdade sempre gera bons resultados. Prova de que o desejo de ser aplaudido também tem um lado bom.
(...)
Tornamo-nos médicos mais humildes e humanos. Aprendemos muito sobre a importância do teatro como garantia de uma boa relação com os pacientes. Quem nunca trabalhou cansado? Quem nunca passou uma noite em claro atendendo a uma demanda bem maior do que deveria ser? Quem sabe das aflições daqueles que estão doentes e buscam no médico conforto, não raro cheios de esperanças vãs? Todos os pacientes esperam que estejamos bem dispostos e que sejamos, de fato, sacerdotes de prontidão para atendê-los com carinho. Eles não precisam, e nem devem, saber quando já estamos loucos para ir pra casa. Esta é a nossa profissão. Praticando, tornamo-nos sim, mais carinhosos, mesmo quando estamos representando. Como já disse, há coisas que não podem ser ensinadas. Aprende-se fazendo.
(...)
Obrigada Jota Dângelo, pelo sonho que criou. Obrigada Rita Lee, por ter inspirado aquela insegura caloura a sonhar além da Medicina.